Esses dias, um post no Threads chamou minha atenção. Era uma dessas perguntas que são feitas para gerar engajamento e que, não por acaso, recebem centenas de respostas. Coincidentemente ou não, a questão já rondava meus pensamentos há um tempo:
“Mulheres, vocês vão se arrepender se não tiverem filhos?”
Uma conhecida, que também é mãe, respondeu algo como “Eu às vezes me arrependo de ter sido mãe. Amo meu filho, mas tive que desistir de todos os meus sonhos pela maternidade" e não demorou para ela receber uma chuva de comentários do tipo “é por isso que eu jamais terei filho". Foram poucas as respostas que se solidarizavam com sua dor, que a questionava do porquê ela atribuir essa mágoa à maternidade, ou apenas um abraço virtual, mas não faltaram mulheres que não têm filhos dizendo que “era por isso que a escolha delas era óbvia". Não preciso dizer que tudo nesse post me incomodou muito. Não o sentimento da mãe exausta, é óbvio, mas esse pensamento agora generalizado na minha bolha de mulheres de mais ou menos 35 anos, bem-sucedidas profissionalmente e majoritariamente de esquerda, de que a maternidade é um monstro castrador de sonhos. Me fez refletir:
Desde quando a maternidade é a única coisa difícil na vida?
E mais: desde quando ser mãe acaba com tudo?
Ser real não significa ser sofrido
Há tempos em que o assunto da maternidade real veio finalmente sendo pauta de veículos e de conversas. Mas como tudo que é explorado pelo capitalismo, sinto que perdemos a mão. Se antes era vendida a maternidade da Disney, onde lancheiras incríveis são magicamente feitas, ranhos e viroses não existem além dos livros de ciências, mães arrumam tempo para criarem crianças, cuidarem da casa, construírem carreira e, ainda, ficarem belíssimas, hoje é a humilhação que é estampada e tida como normal. Se você gosta de ficar com seus filhos e disser que isso é a melhor coisa do mundo, você está romantizando e é proibido romantizar a maternidade.
No início do movimento da maternidade real, as coisas não eram vistas desse jeito tão apocalíptico. Lembro que quando minha irmã teve seu primeiro filho, há 9 anos, essa conversa tinha acabado de ser iniciada - ou, ao menos, começava a chegar em pessoas que ainda não eram mães, como eu. Naquela época, contestava-se a maternidade compulsória, debatia-se sobre essa performance social esperada da mulher onde ela só é validada quando enfim se torna mãe, sobre a dificuldade de voltar ao mercado de trabalho e/ou sobre as demissões pós-licença. Falava-se sobre o fato de mães serem obrigadas a empreender porque não conseguiam emprego; sobre o quanto a licença paternidade é ridícula; sobre como a sociedade exclui mães de eventos sociais e como o patriarcado invisibiliza e dessensibiliza mulheres, entre outras. Discussões necessárias, urgentes, que provocou um movimento de libertação. Foi mais ou menos ali, inclusive no início da massificação do feminismo aqui no Brasil, que mulheres se perguntaram pela primeira vez se elas realmente queriam ser mães. E muitas delas entenderam que não, a maternidade nunca havia sido um sonho.
Agora, corta para 2024.
Mesmo com toda essa informação, parece que fomos um pouco além e sempre que se fala sobre maternidade, alguém começa a dizer como ela é uma grande assassina de sonhos que reduz a mulher ao papel de progenitora. Mesmo a mais privilegiada das mulheres precisa se caricaturizar em um ser humano desprovido de qualquer vaidade para validar a sua experiência, porque se for boa, não é válida. Como se as coisas fossem assim, dicotômicas, a ideia de que a maternidade pode não ser catastrófica não funciona mais e, de uma certa forma, o que fica ainda é toda aquela batida ideia de doação absoluta, trabalho sagrado e amor acima de todas as coisas. Sai o manto da Virgem Maria, entra a calcinha descartável e o peito vazando.
Em uma conversa com a Camila Leite, psicanalista, amiga de longuíssima data e mãe de um menino de 5 anos, ela trouxe um ponto muito importante que gostaria de reproduzir aqui, pois elucidou muito desse meu desconforto:
“Penso muito que essa demonização da maternidade é fruto de ideais neoliberais. Tudo bem acordar de madrugada se for pra malhar ou trabalhar, mas jamais pra cuidar de uma criança. Tudo bem fazer hora extra ou passar a noite em claro em rolê, jamais pra cuidar de uma criança. Criança não tem valor monetário, nem status social e a gente (sociedade) só tem vinculado o valor de alguém ao seu currículo profissional. Criança não cabe na lógica capitalista e, curiosamente, os progressistas e galera de esquerda estão afogados no discurso do capital chamando isso de empoderamento.” - Camila Leite
É óbvio que precisamos fazer recortes sociais para essa crítica: eu não estou falando das mães sobrecarregadas, sem rede de apoio, que sustentam seres humanos com um salário mínimo - jamais. Criar uma criança é extremamente caro além do sentido financeiro da coisa. Estou falando de pessoas que têm condições de terem filhos com acessos, redes de apoio (diaristas, babás, escolas, avós presentes, pais que dividem a criação devidamente, etc). São justamente essas as que colocam a maternidade como essa grande ceifadora de carreiras. Entendo, também, que para algumas pessoas ter se tornado mãe pode ter sido o pontapé para uma série de coisas - desencontros profissionais, divórcio, etc etc. Mas não é só a maternidade. Infelizmente, é a sociedade.
Autopreservação e individualismo
Filha mais velha, criança que “virou adulta cedo demais” e com um enorme senso de responsabilidade quando deveria estar brincando de pega-pega, eu sempre disse que não seria mãe porque não via propósito em colocar mais um ser humano no mundo. Até o nascimento do meu sobrinho, em 2015, essa decisão não só já havia sido comunicada, como já era aceita pela minha família. Porém, ao ver o Arthur, aquele pequeno ser humano olhando pra mim, e sentir um amor ridiculamente avassalador, só consegui pensar em como seria ter tudo aquilo elevado a décima potência.
“Se eu já amava o meu sobrinho mais do que tudo, imagina um ser humano que cresceu em mim?”, pensei. Ali eu descobri que queria ser mãe. Eu tinha 23 anos.
Nunca foi um sonho, sempre foi uma vontade e, portanto, consegui viver e realizar meus sonhos-sonhos (me mudar de Araçatuba, morar em um lugar legal sozinha, publicar um livro) antes de virar mãe. Talvez por isso eu entenda, de verdade, quem lança mão do individualismo para escolher não ter filhos porque, para início de conversa, colocar uma criança no mundo começa como uma decisão por si só individual (EU quero ter filhos / EU quero ser mãe).
Como repetíamos à exaustão para nossos pais na adolescência, nossos filhos não nos pediram para nascer. Ter filhos já é ser individualista, também. Mas eu acredito que esse medo da maternidade, bem como a decisão de não ser mãe, pode vir também do mesmo lugar em que a gente prefere não se colocar em algumas relações para não ter que lidar com o sofrimento de uma frustração. Se preferimos engolir sentimentos para não ter que lidar com a ideia de uma rejeição, é meio óbvio que vamos preferir nos privar de uma experiência como a maternidade por receio de sofrer.
Mas venho aqui com uma informação que talvez seja reveladora: você vai sofrer de qualquer maneira.
Minha filha acabou de fazer dois anos e todos os dias, literalmente, eu falo para o meu marido como tudo ficou mais fácil. Meu primeiro ano como mãe foi muito difícil, mesmo tendo rede de apoio paga no Brasil, família do meu marido bem perto e minha mãe a um voo de 40 minutos de distância. Meu emocional, entretanto, me minava e me fazia incapaz de enxergar aqueles mesmos sonhos que eu tanto falava, no meio da maternidade. Porém, revisitando textos que escrevi em 2014 e em 2020, dois períodos em que também estava deprimida, vejam só, eu também não via futuro, ou realização, ou felicidade. Naquele momento, eu não tinha uma filha e toda a demanda materna, mas também estava esgotada, incapaz, me sentindo horrível e dentro de um buraco. O problema nunca foi a maternidade.
Não é fácil. Mas o que na vida é?
É difícil, claro que é. Maria está em uma fase onde não quer colocar calças, quer usar as meias nas mãos e decidiu que não quer mais usar fraldas ao mesmo tempo em que não quer se ver sem elas. Está cheia de opiniões e agora usa o NÃO como resposta padrão para qualquer coisa. Todos os dias preciso respirar fundo antes de surtar porque não é fácil. Mas antes dela, eram outras coisas que também acabavam com a minha paciência: era o metrô cheio da linha azul. Eram os meus roomates que não davam descarga no banheiro. Era o barulho de britadeira na rua às 5h da manhã. Eram os comentários horríveis dos caras da agência. Era o meu interesse romântico que não me mandava mensagem e me deixava deprimida durante todo um dia. Frustrações aconteciam, com ou sem minha filha. A diferença é que hoje, todos os dias, eu tenho um cangote suado pra cheirar e ouço “eu te amo, mamãe” diariamente.
Esses dias eu vi no Instagram uma dessas frases prontas que me emocionou — porque ser mãe é isso, também, se emocionar com coisas que há meses atrás te fariam dizer “afff, que coisa cafona”— e acho que resume tudo o que tentei escrever: é justo que muito custe o que tanto vale. Fácil não é, mas é lindo.
Se hoje somos convidadas, o tempo todo, a romantizar a vida, por que não podemos fazer isso, nem que seja um pouco, com a maternidade? Criar um ser humano bom para o mundo, se encantar com as primeiras vezes de uma nova pessoa, ajudar uma criança a aprender a viver deveria ser um motivo válido, não? E, na verdade, às vezes, não é nem romantizar. É enxergar a beleza acima de todas as outras coisas. E com uma criança do lado, fazer isso é mais fácil do que a gente imagina.
💬 Falando nisso…
✨ Romantizar a vida virou uma verdadeira filosofia. Nessa matéria do The New York Times você vê como esse “movimento” já faz parte de diferentes bolhas e alguns dos seus benefícios. Em inglês.
☕️ A Malu Queiroz traz um claro exemplo de como enxergar beleza no ordinário nesse último texto da sua newsletter.
🧷 A ótima Laurinha Lero leu o livro da Viih Tube para que a gente não precisasse. Vem ver porque está imperdível (e eu não estou falando do livro).
🩶 A co-fundadora da Contente, Luiza Voll, vem postando uma série de conteúdos lindos sobre sua maternidade. Nesse post (que me pegou bastante), ela fala sobre como cuidar do seu filho a ensina a cuidar de si mesma. Lindo!
📚 #GoodreadsDaMimia
Uma sessão com os últimos livros lidos para minha filha e que eu acho que são ótimas dicas para os seus pequenos também.
→ Pete The Cat: I love My White Shoes
Ficamos obcecados pelo Pete The Cat aqui em casa. Com histórias rápidas sobre enxergar a vida de um jeito positivo, esse livro ainda vem com uma musiquinha deliciosa que sua filha ou filho vão cantarolar por horas. É em inglês, mas é bem facinho — dá pra ler mesmo se seu pequeno não for bilíngue.
→ Macaco Danado (Monkey Puzzle)
Maria tem a versão em inglês (Monkey Puzzle), mas como minha sobrinha tem a versão traduzida pela Gilda de Aquino, pude ler e é, de fato, um trabalho impecável. Esse livro da Julia Donaldson é engraçado, traz a criança para dentro da história, brinca com expectativas e também é educacional. Perfeito para os piticos que estão em suas fases “animais”.
Também da Julia Donaldson, o Grúfalo é mais um livro desse mesmo universo da floresta, mas com uma história sagaz de um ratinho esperto que, para se livrar de seus predadores naturais, invoca a figura de um suposto grúfalo. Maria está apaixonada por esse e estou tendo que ler todas as noites, antes de dormir. "
Maria gostou tanto desse aqui que tivemos que renovar o aluguel na biblioteca. Com ilustrações lindas, esse livro conta a história de um lobinho solitário (que nada mais é que um cachorrinho ranzinza) que está em uma feira de adoção. Fofo!
Leia também:
Maravilhosa! Essa semana li um post da Obvious sobre o assunto e não gostei. A convidada escreveu um livro chamado "contra os filhos" e afirma que a maternidade acaba com a liberdade. Não concordo com esse tipo de discurso e sou uma mãe que foi muito influenciada por essas ideias a ponto de ficar depressiva durante a gravidez. Eu achava que minha vida iria acabar. Mas olha só, minha filha tem 2 anos e tudo o que sou e vivo foi porque ela nasceu. Não era tão horrível assim. E não é. E não tenho rede de apoio voluntária e nem paga. Mas vou vivendo. Enfim, obrigada por esse texto. Muito muito necessário!
Que texto sensacional! Tive essa impressão sobre a “demonização” da maternidade mas nem sabia direito colocar em palavras exatamente o quê incomodava nesse discurso - mesmo porque não pretendo e nem posso ter filhos biologicamente, mas era algo que eu definitivamente vinha observando.
Pior ainda é esse discurso em alguns círculos de mães de crianças que, como eu, são autistas. Muitas delas de fato não possuem recursos necessários pra criança, estão sobrecarregadas, etc. mas uma parte tem recursos sociais e financeiros e ainda assim diz coisas como ‘não escolheria ser mãe se soubesse que meu filho ia nascer assim’ ou ‘amo meu filho mas odeio o autismo dele’ e ainda coisas piores como confessar uma frustração enorme pela criança não performar como elas querem, externalizando isso na frente dela (a criança). Fico com um incômodo enorme e penso exatamente nesse ponto: ora, mas não já seria difícil a vida independente da condição atípica do seu filho? Aliás… deficiência é algo que pode ocorrer a qualquer momento na vida. Não é como se fosse uma possibilidade remota. É mais um aspecto da vida. E bem, evitar, excluir ou subestimar pessoas com deficiência tem raizes eugenistas muito fortes, sabe? E pior! Essas mesmas mulheres que você cita no começo, que vestem essa demonização da maternidade como empoderamento, também são as mesmas que muitas vezes justificam a escolha de não maternas nessa mesma base eugenista de terem “medo” que a criança nasça com “algum problema” e afins.
Enfim, texto pontual demais, com uma certa coragem em também falar e expor esse ponto de vista. Que bom estar por aqui!